- Introdução
O setor de saúde enfrenta uma das cargas tributárias mais elevadas e complexas do sistema fiscal brasileiro. Entre isenções parciais, regimes especiais, e um volume significativo de aquisições de insumos, equipamentos e contratação de serviços, é comum que clínicas, hospitais, laboratórios e instituições de saúde acabem pagando tributos em excesso ou de forma indevida.
A recuperação de créditos tributários é um instrumento legal que permite a compensação ou restituição desses valores, respeitando os prazos e condições estabelecidos em legislação própria. Para tanto, é preciso compreender não apenas os fundamentos legais e as possibilidades de crédito, mas também a operacionalização segura desse processo junto à Receita Federal, secretarias de fazenda estaduais e órgãos municipais.
Este artigo foi elaborado para ser um guia completo sobre a recuperação de créditos de PIS/Cofins, ICMS e ISS especificamente no contexto do setor de saúde. Trata-se de uma abordagem técnica, com foco educativo e institucional, alinhada ao perfil do sbclaw e em consonância com os valores da Allia, que defende uma atuação estratégica, inovadora e legalmente responsável no cenário empresarial brasileiro.
- Panorama tributário no setor de saúde
2.1 Regimes e complexidade normativa
O sistema tributário brasileiro é caracterizado pela coexistência de tributos federais, estaduais e municipais, que se sobrepõem em diversos aspectos. No caso das empresas de saúde, os principais tributos incidentes são:
- PIS/Pasep e Cofins (federais, sobre o faturamento);
- ICMS (estadual, sobre circulação de mercadorias);
- ISS (municipal, sobre prestação de serviços);
A depender do tipo de atividade (hospitalar, ambulatorial, laboratorial, clínica geral ou especializada), a empresa pode estar enquadrada em diferentes regimes, como:
- Lucro Real (regime que admite apuração de créditos de PIS/Cofins);
- Lucro Presumido (regime mais simples, sem direito à maioria dos créditos);
- SIMPLES Nacional (regime unificado com regras próprias);
Portanto, o primeiro passo para qualquer estratégia de recuperação é identificar o enquadramento fiscal da empresa, os tributos efetivamente pagos e as possibilidades de crédito que se aplicam a sua realidade.
2.2 Princípio da não cumulatividade
Previsto no art. 195, § 12 da Constituição Federal, o princípio da não cumulatividade permite ao contribuinte compensar o que pagou nas etapas anteriores com o que deverá pagar nas etapas seguintes. A aplicação efetiva deste princípio varia conforme o tributo:
- Para o PIS/Cofins, o princípio se aplica ao regime não cumulativo (Lei nº 10.833/03 e Lei nº 10.637/02);
- Para o ICMS, há previsão constitucional (art. 155, §2, I);
- Para o ISS, não há previsão expressa de não cumulatividade, o que limita a recuperação, mas não a impede em casos de cobrança indevida ou bitributação.
2.3 Especificidades no setor de saúde
Empresas da área de saúde operam com uma variedade significativa de produtos e serviços, o que torna a apuração de créditos mais desafiadora. Além disso, muitos contratos envolvem planos de saúde, convênios e compras em larga escala, o que exige controle rigoroso da documentação fiscal e da escrituração contábil.
Outros desafios incluem:
- Classificação errada de NCM e CFOP que afeta a incidência do ICMS;
- Cobrança indevida de ISS sobre atividades mistas;
- Insumos hospitalares com alíquotas diferenciadas, muitas vezes mal aproveitados no cálculo do crédito.
- Recuperação de créditos de PIS/Cofins
3.1 Fundamentação legal e conceito de insumos
O regime não cumulativo do PIS/Cofins é regido pela Lei nº 10.637/2002 e Lei nº 10.833/2003. Ele permite o desconto de créditos relacionados a custos e despesas essenciais à atividade da empresa, incluindo os chamados “insumos”.
O conceito de insumo, segundo decisão do STJ no REsp 1.221.170, deve considerar a essencialidade e relevância do bem ou serviço para a atividade econômica. No setor de saúde, isso inclui medicamentos, materiais descartáveis, EPIs, instrumentais cirúrgicos e até serviços de limpeza hospitalar.
3.2 Itens elegíveis para crédito
A depender do tipo de operação e da destinação do insumo, podem ser tomados créditos de:
- Medicamentos e materiais de uso direto em procedimentos;
- Equipamentos utilizados para exames e cirurgias;
- Serviços terceirizados essenciais, como esterilização e segurança;
- Serviços de alimentação e lavanderia hospitalar.
O correto enquadramento e documentação são fundamentais para evitar autuações fiscais e garantir a efetividade dos créditos apurados.
3.3 Procedimentos operacionais
Para recuperar os créditos, é necessário:
- Levantamento das notas fiscais de aquisição;
- Classificação e análise das despesas por centro de custo;
- Escrituração dos créditos no EFD-Contribuições;
- Compensação via PER/DCOMP ou pedido de restituição.
Além disso, é importante a adoção de controles internos robustos e auditoria recorrente dos documentos fiscais.
3.4 Jurisprudência relevante
A jurisprudência tem evoluído no sentido de ampliar o conceito de insumo, reconhecendo sua aplicação a itens anteriormente excluídos pela Receita Federal. Exemplos incluem:
- EPI como insumo essencial durante a pandemia de COVID-19;
- Serviços de lavanderia hospitalar como parte integrante da prestação de serviço médico;
- Reconhecimento de insumos indiretos conforme análise setorial.
- Recuperação de créditos de ICMS
4.1 Natureza e hipóteses de incidência
O ICMS incide sobre operações de circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte e comunicação. No setor de saúde, ele se aplica principalmente a:
- Aquisição de medicamentos e materiais hospitalares;
- Compra de equipamentos e insumos laboratoriais;
- Importação de produtos médicos.
4.2 Casos de incidência indevida
Diversos hospitais e clínicas pagam ICMS mesmo em operações que deveriam estar isentas, como:
- Isenção de ICMS para hospitais filantrópicos (Lei Complementar nº 87/1996);
- Alíquota zero para certos medicamentos e próteses;
- Benefícios fiscais estaduais não aproveitados corretamente.
Nesses casos, a empresa tem direito à restituição dos valores pagos a maior.
4.3 Procedimentos de recuperação
- Identificação de fornecedores e notas fiscais com ICMS indevido;
- Análise dos convênios e regimes de substituição tributária;
- Revisão da apuração mensal do ICMS e créditos acumulados;
- Abertura de processo administrativo junto à SEFAZ.
A atuação deve ser conjunta com a contabilidade e o departamento fiscal, com base em parecer jurídico técnico.
- Recuperação de créditos de ISS
5.1 Base de cálculo e natureza jurídica
O ISS é um tributo municipal que incide sobre a prestação de serviços constantes na lista da Lei Complementar nº 116/2003. Ocorre que, em muitos municípios, há cobranças indevidas sobre atividades que envolvem:
- Fornecimento de materiais juntamente com a prestação de serviço;
- Serviços realizados por terceiros em ambiente hospitalar;
- Atividades não listadas na norma complementar.
5.2 Situações recorrentes de bitributação
- ICMS cobrado sobre serviço já tributado pelo ISS;
- Incidência de ISS sobre faturamento de operadoras de plano de saúde;
- Cobrança do ISS em local diverso da sede da prestação do serviço.
5.3 Estratégia de revisão
- Levantamento das guias de recolhimento de ISS por período;
- Cruzamento com notas fiscais emitidas e documentos de prestação;
- Análise jurídica da competência municipal e tipificação do serviço;
- Requerimento administrativo ou judicial com base em tese de bitributação.
- Procedimentos técnicos: PER/DCOMP e vias administrativas
O PER/DCOMP é o sistema eletrônico utilizado para solicitar a compensação ou restituição de tributos pagos indevidamente. Seu uso é obrigatório para tributos federais, como PIS/Cofins, e pode ser replicado por sistemas estaduais e municipais no caso de ICMS e ISS.
6.1 Etapas práticas
- Acesso ao e-CAC e validação de certificado digital;
- Preenchimento do formulário eletrônico com dados do crédito;
- Anexação de documentação comprobatória;
- Acompanhamento do processo até decisão final.
Para tributos estaduais e municipais, os procedimentos variam conforme a jurisdição. Alguns exigem protocolo físico, outros permitem o uso de sistemas próprios.
- Boas práticas e governança tributária
Uma recuperação de créditos bem-sucedida exige mais que conhecimento jurídico. É preciso uma estrutura de governança que una o jurídico, o contábil e o financeiro da organização.
7.1 Elementos de uma estratégia eficaz
- Criação de comitê fiscal multidisciplinar;
- Padronização de processos de apuração e escrituração;
- Treinamento de equipe interna para revisão documental;
- Uso de softwares de auditoria e automação fiscal;
- Contratação de parecer técnico quando necessário.
- Impactos e tendências
8.1 Reflexos financeiros
A recuperação de créditos impacta diretamente no fluxo de caixa da organização. Em momentos de alta demanda ou restrição orçamentária, como durante crises sanitárias, o aproveitamento correto desses valores pode fazer a diferença entre manter ou não a operação de determinados serviços.
8.2 Reforma tributária e digitalização
A Reforma Tributária em discussão prevê a substituição de tributos como PIS, Cofins, IPI e ICMS por um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Ainda que sua aplicação seja futura, instituições de saúde devem se preparar para um cenário mais digital, padronizado e com menos margem para interpretações divergentes.
- Considerações finais
A recuperação de créditos tributários é uma ferramenta legítima, estratégica e fundamental para o equilíbrio econômico-financeiro das empresas do setor de saúde. Executada com base em critérios técnicos, respeitando os limites legais e com respaldo documental, ela representa um pilar de eficiência fiscal.
Ao mesmo tempo, o aumento da fiscalização digital e o avanço da jurisprudência exigem atenção constante e atualização profissional. O cenário aponta para uma atuação mais proativa e multidisciplinar, com foco em dados, conformidade e planejamento tributário.